CINEMA - FENCES, UM LIMITE ENTRE NÓS
- Naiara Paula
- 6 de mar. de 2017
- 7 min de leitura

O filme é ambientado nos EUA da década de 1950 e começa com uma lição: dois homens pretos, Troy, o protagonista, e Bono, seu melhor amigo; discutem sobre funções que são reservadas apenas para pessoas pretas, “Por que os brancos dirigem e só os pretos fazem força?”, e a partir daí a gente acompanha a luta do protagonista por adquirir o direito de também dirigir os caminhões da empresa onde trabalha, como os brancos fazem.
Acompanhamos também seus argumentos, a busca pelo sindicato, pela lei e por afirmar suas capacidades e direitos enquanto homem preto dentro de sua comunidade. Ele sabe até onde precisar ir e sabe que é preciso ir e está seguro quanto a isso. A dificuldade em assinar seu nome e em seguida a aparição da bandeira dos EUA surge como uma denúncia. Troy é analfabeto, tem um passado muito doloroso, um melhor amigo de características passivas diante do que a vida lhe dá, dois filhos homens como ele, e um irmão, Gabe, que voltou da guerra com sérios problemas de saúde, de quem é ele quem precisa cuidar, e o faz.

O filme pode ser visto como a história de homens pretos que foram anulados pela sociedade racista e postos impotentes diante de seus desejos, suas esperanças e de suas famílias, numa luta constante e cansativa por afirmação e sustentação de sua alteridade.

Todas as mulheres do filme estão ocultadas no equilíbrio que Rose tenta trazer às vidas incompletas desses homens, elas estão ocultadas porque nós precisamos olhar para eles, nós precisamos vê-los de todo jeito possível, ver o que racismo fez com eles, como também destrói suas vidas. Mas elas não estão negligenciadas. Rose é a base, é a força, nela vive todas as mulheres citadas no filme, sua energia é abundante e preenche tudo.
O protagonista, a seu modo, compreende que as coisas estão mudando e só por isso, ao que parece, acredita que vai conseguir o que deseja na empresa onde trabalha, mas não consegue ver isso de maneira ampla. Seu filho mais novo, Cory, deseja ser atleta e ele irremediável, não deixa, não acredita que os brancos (o racismo) o deixarão jogar.

Insiste que ele faça as tarefas de casa e se profissionalize, não acredita num futuro na universidade para seu filho através do beisebol, nem com todas as provas das possibilidades apresentadas a ele durante todo filme. Troy é agressivo e intransigente.
Troy está lutando pelos seus na sua empresa, onde nenhum preto antes tinha conseguido o cargo de motorista, Lyons acredita que pode ser músico; Cory, que pode ir para a universidade. Mas Troy trabalha numa companhia de limpeza urbana e “recolhe o lixo dos brancos”, parece que para ele é inimaginável muito mais do que isso, parece que existe uma margem para se lutar pelos seus direitos. Posteriormente, os retratos de Martin Luther King e do Presidente Kennedy em sua parede, parece nos indicar que eles entenderam e acreditaram de alguma forma nas mudanças para a população preta norte americana através da luta pelos direitos civis. Seu filho mais velho, Lyons, o músico (que fala cantando, se move como a música e seu rosto brilha de esperança), é também desacreditado pelo pai. Seu pai está a todo tempo pensando no futuro, como se soubesse o que lhes vai acontecer, e isso mais que agressividade, vira profecia, porque sua imobilidade deixa tudo nesse caminho. Suas palavras e atitudes hostis deixam seus filhos exatamente onde ele acredita que eles devam estar.
Troy é um homem sem cresça no futuro.

Troy é um homem preto comum, que bebe quando termina o expediente de trabalho para distrair sua vida, a bebida e as mulheres são a diversão que lhe pode ser paga, a bebida e mulheres são o que cabe a um homem de sua cor e de sua classe ter e nada além disso. Ele é um homem responsável com seus filhos, seu irmão, seu amigo, com sua esposa e com sua amante. Acredita que precisa fazer seu papel e os cumpre com rigidez. Seus filhos precisam ser como ele, ter um emprego simples o suficiente para cuidar de suas mulheres e filhos. Nada mais. Porém, seus filhos são suas próprias partes, que viveram dentro dele e quiseram ser livres um dia e não puderam e que agora se soltaram dele para se libertarem e realizar, mas que ele tenta trazer de volta para si e mantê-las presas todo o tempo. Ele ama a música, conversa com música e seu filho Lyons é músico; ele ama beisebol, tentou ser jogador, fala como se estivesse num jogo, e seu filho Cory é jogador de beisebol. Lyons tem a sinuosidade da música em seu corpo, se balança como um som, Cory a agressividade do jogo, se movimenta como em uma estratégia e Troy tem as duas características em seu corpo, se movimenta e fala como se estivesse jogando, suas pernas, sua mãos... E pende seu corpo e sua voz como numa dança. Seus filhos representam aquilo que ele é, mas não pôde viver, são suas partes que querem se libertar e ser agora, mas Troy as sufoca. Parece ignorante, parece absurdo, e você fica com muita raiva do personagem, além de uma certa angústia com sua imobilidade e certa maldade com seu filho mais novo movida por essa imobilidade mental. Porém, Troy é um homem preto que viveu mais do que seus filhos e, consequentemente, sofreu mais do que eles. Que teve dias difíceis, que viu a crueldade dos brancos bem de perto, que não realizou seus sonhos, que perdeu, e que aprendeu exatamente como ensina. Troy ensina o que tem, e isso foi tudo o que ele pôde ter, e pensa merecer ser considerado por ter conseguido dar a seus filhos mais do que seu pai lhe deu. Parece bastante egoísta e vil. Mas quando percebemos o que isso significa de verdade, deixamos de sentir raiva do personagem e começamos a entendê-lo como um homem de seu tempo que teve sua personalidade ostensivamente violentada e por isso não consegue alcançar muito além do que tem em mãos. Ele não tem mais do que isso. E creio que é muito importante pensar sob esse ponto de vista. Porque se ele não tem mais do que isso, ele não pode dar mais do que isso, ele não pode ver mais do que isso. Troy sofreu demasiadamente em sua vida e não quer que seus filhos sofram igual, ele conhece aquelas partes esperançosas que cantam e jogam, aquelas partes é ele próprio que foi derrotado severamente um dia, então ele está fazendo tudo o que sabe para mantê-los a salvo.
Infelizmente esse homem que trabalha todos os dias para manter sua casa e seus filhos comete muitos erros e não é perdoado por eles. Mas você consegue se compadecer com sua dor, porque o filme te leva a entender que o erro não é só do personagem, mas também e, principalmente, de uma sociedade que violenta a população preta e destrói sua personalidade, sua sanidade e suas famílias. Você não quer desculpá-lo, mas você quer sim salvar aquele homem de si mesmo, você quer salvar sua família, mas você não pode. Ninguém pode. O futuro de mais uma família preta, por mais que tentassem fazer força contra, teve um final infeliz. Então, a força da mulher preta é fundamental, ela não o encoraja no seu erro, mas se mantém firme, ela sustenta a família e é ela então o único caminho possível de volta. A gente pode imaginar vários finais felizes pra essa família, a gente pode imaginar vários caminhos para essa mulher, a Rose, e para a amante, Alberta; a gente quer que elas sejam felizes, que ele seja feliz também; a gente quer aplicar várias teorias diferentes para aquelas vidas, a gente sabe o que está errado, o que deveria mudar, a gente sabe como deveria ser... Mas o filme nos mostra o que é e não o que deveria ser e essa é a ferida que vai doer dentro de você se você for um homem ou uma mulher preta. Aquilo é o que é. E não fomos nós que fizemos isso conosco.
Fences é um filme musical e poético, Troy, apesar de tudo, é um romântico alegre que conseguiu sentir amor. É um homem apaixonado por sua amante Alberta e por sua esposa Rose. E seu amor por Rose nos presenteia com várias letras de músicas apaixonadamente entoadas por ele como em uma conversa. Um pedaço de uma letra que eu identifiquei em suas falas foi “I don't want to be your boss[1], baby / I just want to be your man”, When Things Go Wrong (It Hurts Me Too) - Big Bill Broonzy,
que eu gosto de chamar de música tema do meu livro Primavera. E “Ain’t Got No Maney”, Ain’t Got No/ I Got Life, Nina Simone.
E várias e várias outras letras de músicas misturadas às falas.
Não vou discorrer sobre as interpretações geniais de Denzel e Viola Davis, Viola ganhou um Oscar por sua personagem e Denzel foi indicado como melhor ator, e, sinceramente, não que o Oscar seja de verdade sinalizador pra gente, mas ele deveria ter ganhado, a maneira como ele sequencialmente vai nos levando para dentro do seu corpo, no seu ritmo e no ritmo exato, é perfeita. Mas quero dizer que achei que deu muito certo toda aquela teatralidade redirecionada para a tela do cinema. Sempre ouço dizer que teatro filmado não dá certo, é claro que aquilo não era teatro, mas era quase, a adaptação do roteiro ficou ótima, pudemos identificar nitidamente a junção das duas artes dando certo, muito certo. Um elenco cem por centro preto, música preta, vidas pretas sendo interpretadas magistralmente. Se não doer muito, você vai querer assistir outra vez.

O filme foi escrito como peça por August Wilson e foi interpretado também no teatro por Denzel Washington.

A adaptação do roteiro para o cinema foi feita por seu dramaturgo August Wilson e teve a direção de Denzel Washington; atuações de Viola Davis, Russell Hornsby, Mykelti Williamsom, Stephen Henderson, Jovan Adepo e Saniyya Sidney.
Está em cartaz. Vá ver!
[1] Ele trocou “patrão” por “marido”.
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