Na Sibéria dos desejos
- Naiara Paula
- 15 de jul. de 2018
- 4 min de leitura

I
Hoje eu acordei e meu corpo já estava longe do teu, então decidi te escrever os meus dias, não porque eu desejo que você saiba deles ou mesmo que saiba sobre o que escrevo, que na verdade, nunca se destinará a você, daqui ninguém poderá me ouvir. Escrevo porque não consigo segurar as bordas do amor que sinto. E ele vai se derramando de mim por todas as ruas de São Petersburgo, corre junto com as águas do canal Griboedove e na frente da Catedral o sangue derramado em lágrimas é o meu. Escrevo para você, amor, apenas para guardar o meu caminho para o teu esquecimento.
II
Olhei o mapa e parti para onde mais longe da minha angústia eu pudesse ficar. Aqui me desencontro. Quase ortodoxo no modo de me fazer esquecer. Todos os dias antes de dormir eu penso que nunca mais torno a abrir meus olhos. É como um desejo. E me parece tão real. Até que o brilho do quase verão russo ilumina meus olhos e me põe no caminho para a próxima estação. Todos os dias eu quase posso mudar de ideia e seguir os tantos fios que atravessam, ainda inexplicavelmente para mim, essa cidade e me conectar ao meu amor deixado atrás. Mas você, o objeto de meu amor, é um sonho que quer seguir sem mim, enquanto eu finjo que entendo e sigo, também, sem você. Sozinho, com esse amor todo, sigo para o próximo caminho, derramando-o por onde passo, porque ele insiste ser imensidão. E ele se mistura a paisagem fria da estrada e tudo parece um só: luz, neblina, ar, nuvem, céu, amor... A cinza estátua de Lênin ensolarado à beira mar aponta o cais. É muito mais do que isso, mas é um caminho e eu decido partir para a Mongólia e antes aprender como olhar de cima com os falcões, deixar minhas asas crescerem e só então voar para o próximo porto. Um mais longe, um mais alto, um mais profundo. Meu destino. No trem dos desejos por apagar minha mente, a Sibéria dos sonhos distantes me espera, iluminada e fria. Pelas janelas desse trem toda essa extensa estrada é minha e eu sou dela. Eu sou ela.
III
Tão grande quanto a imensidão siberiana é a distância de minha mente ainda torpe com os sonhos juvenis e as verdades do meu corpo. Eu estou na Sibéria dos desejos torpes. Onde muitos evitam estar, onde algumas mentes são jogadas para o esquecimento. Eu joguei o meu próprio corpo. E eu gosto de sentir meu corpo jogado aqui. Eu estou na Sibéria emocional da minha vida toda, onde meus olhos olham todas as estradas pelas janelas dos trens que me levam para dentro da Sibéria dos meus sonhos. Onde posso molhar meus dedos no Lago Baikal e experimentar a solidão de quem anda cheio de amores à espera em muitos cantos do mundo que é fora de aqui. Agora eu quero estar aqui, na Sibéria de você. Então eu me coloquei nesse caminho longo que parece não ter fim e a Sibéria do meu pensamento vaga só pelos trilhos das descobertas quando a luz é mais brilhante e capaz de aquecer minha alma e deixá-la exatamente distante, onde eu não posso ser alcançado por nenhum outros pés que não sejam os meus, onde não chega nenhum outro amor que não seja o da fria lembrança do que deixei atrás. Tão frio quanto o verão nos campos siberianos é o coração daquele que me fez partir. Eu fui deixado na Sibéria do amor. Onde o verão flutua sob meus olhares vagos e pálidos e cheios de esperança como em pores do sol, ondas e tempestades de calor transitando entre os corpos mais rápido que a velocidade que passam os trilhos desses trens que viajo para dentro e, ao invés, para a Sibéria dos desejos.
IV
Na Sibéria dos desejos existem cores e rostos inesperados que se transmutam no meu. Tem a lembrança dos amores vividos que deixei em cada trem, em cada cidade. Meu coração muda. Eu sou um outro homem. Eu sou mais de um homem. Eu sou outra coisa de homem. Produzo mais e outros desejos. Deixo meu corpo livre. Deixo minha mente livre. Me deixo amar o que eu quiser. Agora eu amo meu próximo caminho e não me sou indiferente às eternidades, pois tudo o que é eterno voa sorridente nas asas vibrantes do tempo.
V
Todos os dias ao acordar eu procuro saber o que o amor mudou. Eu abro meus olhos e o segundo ato é buscar saber o que o amor foi capaz de mudar nesse dia. Pergunto a recepcionista no hotel onde me hospedo sobre algum recado de algum rapaz que porventura tenha se apaixonado por mim na noite anterior, se não houver, eu espero pelo próximo, haverá outras noites. Algum novo país foi inventado pelo amor. O rapaz que eu amei no último trem também me ama. O amor não deixou ninguém sozinho hoje. O que o amor mudou hoje? Eu procuro por isso. Eu olho os jornais. Eu leio em russo. Eu entro noutro trem. Eu estou na Praça Vermelha, cheio de vermelhos sonhos que ardem como a grande lua de fogo no céu. Eu sou o que meus desejos fazem de mim. Eu sou isto. Não insisto. Apenas me coloco aqui. E eu busco incessantemente pelas mudanças do amor. O que o amor mudou hoje? Eu acredito no próximo trem, ele me levará para onde o amor mudou alguma coisa. Eu entro nele. Eu decido que estarei onde o amor estiver. E eu estarei onde o amor estiver. E mais uma vez eu sou a paisagem na minha janela. Eu sou toda ela. Eu entendo. Eu sigo. Eu sigo adentro.
De Naiara Paula
Inspirado nas viagens de Lucas Bertolo
Imagem: Aldeia Russa, de Lasar Segall.
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