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Como recuperar a humanidade preta a partir de referenciais estéticos - Compilação de textos


Como recuperar a humanidade preta a partir de referenciais estéticos, de Naiara Paula

Como recuperar a humanidade preta a partir de referenciais estéticos

Naiara Paula Eugenio

PPGFIL/UERJ - Doutoranda em Estética e Filosofia da Arte Africana

LLPEFIL/UERJ - Filosofia Africana

Apoio CAPES

Naiarapaula.e@gmail.com


  1. A experiência estética e a formação humana.

1.1 Construção de indivíduo

A formação do indivíduo deve estar vinculada ao meio ambiente “O ser humano carece de instintos que oriente de modo seguro sua atividade e o leve a fazer em cada momento o eu for necessário para a conservação da própria vida e da espécie. Deve escolher e ao optar entre diversas possibilidades que o meio ambiente lhe oferece, vai criando seu mundo” [Quintás, 1992].


E como ela vai criando seu mundo? Leroi-Gourhan chama de estética funcional, segundo Jérôme Souty, atividades surgidas acerca de 3 milhões de anos, quando já se utilizam-se de tinta e catava certas pedras, conchas e fósseis julgando atraentes pela cor, forma ou pela textura [há 1,5 de anos]. Há 3OO mil – 4O mil anos, algumas ferramentas, sobretudo aquelas feitas de pedra lascada, eram talhadas respeitando alguns critérios estéticos – busca da simetria e do belo corte – e não apenas utilitários.


“Atuais pesquisas científicas convergem ao afirmar eu um conjunto de comportamento simbólico próprios aos seres humanos emergiu na África há cerca de 5O mil anos. Momento e eu teria ocorrido o que foi provavelmente a maior revolução cultural da humanidade e que coincide com uma radical mudança de comportamento. Desde então, um pequeno grupo de homens passou a dispor de um sistema de pensamento e de uma forma de linguagem que, e sua estrutura, são os que ainda hoje preservamos.” [Souty, 2011]


“O nascimento do eu hoje podemos qualificar como arte é indissociável de uma série de inovações cognitivas, sociais e culturais.

Nascimento da arte figurativa – 4O mil anos – arte pariental, grandes afrescos em grutas.” [Souty, 2011]


“Será que o homem pré-histórico foi um esteta tão sensível às belezas do mundo que tentou reproduzi-las no fundo de sua caverna? A tese da arte pela arte, defendida no fim do século XIX, foi rapidamente abandonada. Não é possível apenas por uma perspectiva estética, dar sentido ao fato de homens do Paleolítico terem escolhido lugares tão obscuros e de difícil acesso para realizarem suas pinturas, cuja execução implicava a necessidade de se arrastar por dezenas de metros, em plena escuridão, para se chegar ao fundo das grutas.” [Souty, 2O11]


1.2 Expansão do ser em unidade

“A ciência contemporânea, sobretudo a biologia, acentua que o homem é um “ser de encontro; constitui-se, desenvolve-se e se aperfeiçoa fundando relações de encontro com as realidades do meio ambiente que oferecem possibilidades para isso. Este tipo de relação é tão fecundo quanto exigente. Supõe uma fonte de prazer, entusiasmo, felicidade, amparo, simbolismo, festa, mas exige do homem uma atitude de abertura generosa, de disponibilidade, de singela confiança, de amor inquebrável aos modos mais altos de unidade.” [Quintás, 1992]


“A estética pode desempenhar um papel decisivo nesta difícil tarefa pedagógica. Se se analisar com finura metodológica a articulação interna da experiência artística, descobre-se nela uma trama fecunda de apelações e respostas, e se adivinha o nexo que existe entre a entrega a instâncias valiosas e acesso ao melhor de si mesmo.” [Quintás, 1992]



2. Afrocentrando as perspectivas de criar-se a si mesmo

2.1 A estética preta e nossa construção de humanidade.

“Primeiro, devemos considerar a natureza da visão de mundo africana. Nessa visão, o universo é concebido como um todo espiritual no qual todo ser está inter-relacionado. De fato, é a essência espiritual do universo que explica a interdependência dos seres dentro dele. É fenomenal. Está vivo. A verdade primária e mais convincente é a força (energia/ poder). Uma única força se manifesta em sinergia como muitas forças. Praticamente, a vida consiste em transmitir, dar e receber energia; de energizar e ser energizado. Essa é a experiência significativa. Estas são as verdades ontológicas. Psicologicamente, a perspectiva significativa é: "nós", "nós", "nosso". Os mecanismos culturais estão se unindo, compartilhando e em coletividade. Essa visão do universo é ao mesmo tempo mística, espiritual e pragmática. Pode ser também politicamente eficaz?

Nossa reconceitualização de "estética" deve ter uma base espiritual, se é para ser fiel ao utamaroho africano (vida espiritual). Devemos, ao mesmo tempo, adequar esse conceito africanizado ao nosso objetivo mais urgente: a libertação das mentes africanas para a autodeterminação e a evolução vitoriosa do mundo africano. Em outras palavras, deve ter implicações espirituais e políticas. Ser afrocentricamente político é se preocupar com o interesse do grupo, não ganho individual ou ambição. Nosso conceito deve lidar com a comunicação/explicação/tradução de sentimentos coletivos. Deve incluir um comportamento intencional. Nossa reconceitualização deve estar relacionada à criação de uma consciência nacional africana.

Precisamos de um conceito que tenha como ponto focal a sensibilidade africana; não "beleza" como uma abstração, mas o espírito interno. Estamos preocupados com o processo do "toque" desse espírito, com o fenômeno de como o espírito africano é mobilizado, e de como ele pode ser o guia de nosso interesse político. Nós devemos procurar entender este processo como uma força que pode ser usada para energizar, mobilizar, sintetizar e coletivizar a resposta africana, assim como para dar prazer pessoal. Nós não estamos preocupados com prazer por prazer. A concepção europeia de "estética" como "beleza" é irrelevante para este esforço. Nossos antepassados entenderam bem a natureza intencional daquilo que a Europa tentou reproduzir ao nomear "arte africana".” [Marimba Richard]


“Agência significa que toda ação tem de ser fundamentada em experiências africanas. Como tal, a Afrocentricidade oferece tanto ao teórico como ao praticante canais de análises nítidos e precisos.

Um agente é um ser humano capa de agir de forma independente e função de seus interesses. Já a agência é a capacidade de dispor de recursos psicológicos e culturais necessários para o avanço da liberdade, opressão e repressão racial.

Quando consideramos questões de lugar, situação, contexto e ocasião que envolva participantes Africanos, é importante observar o conceito de agência em oposição ao de desagência. Dizemos que se encontra desagência e qualquer situação na qual o Africano seja descartado como ator ou protagonista em seu próprio mundo.” [Asante]

“Nossa libertação do cativeiro da linguagem racista é a prioridade do intelectual. Não pode haver liberdade alguma até que haja liberdade da mente. A primeira regra para a liberdade da mente é a liberdade da linguagem. Como Lorenzo Turner disse, linguagem é essencialmente o controle do pensamento. Não será possível direcionar nosso futuro sem primeiro controlarmos nossa linguagem. O sentido da linguagem está na precisão de vocabulário e na estrutura em um contexto social particular. Se nos deixarmos aprisionar pelos conceitos dos outros, então sempre falaremos e agiremos como eles. A linguagem preta deve possuir instrumentalidade, ou seja, ela deve ser capaz de fazer algo pela nossa libertação.

Toda linguagem é epistêmica. Nossa linguagem provê nosso entendimento de nossa realidade. Uma linguagem revolucionária não deve ser hermética, não pode servir para confundir. Cabe aos críticos a tarefa de clarificar a linguagem pública sempre que acreditar eu ela pode solucionar questões.

Quando o opressor usa a linguagem para manipular nossa realidade, Nommo deve continuar o caminho correto de análise crítica, para nós e por nós. Tal caminho não é ditado necessariamente pela retórica, mas pelo Njia para o intelectual africano-americano. O objetivismo, nascido da cultura histórica e dos fatos de nossa existência, devem ser a base de nossos discursos e de nossa escrita. Os estudos penetrantes de Ama Manzama sobre linguagem no Caribe demonstrou que a capacidade de mantermos a nossa língua é uma das chaves para a sanidade e uma forma de resistência efetiva à colonização.” [Molefi K. Asante]


2.3 Exemplo de reconstrução na diáspora

“A cultura popular Africana Americana constitui um dos mais poderosos elementos para a beleza e inovação na sociedade americana. Isto é, claro, uma extensão em si da própria estética africana. Assim sendo, como em muitas linguagens tradicionais africanas, a palavra para “bom” e “beleza” é a mesma palavra. Possivelmente, muito mais importante do que o contexto sociológico para os Africanos Americanos seja o padrão de conexões que surgem quando examinamos o vínculo entre a estética Africana Americana e a Africana

Isto é indiscutivelmente uma afirmação da ancestralidade e uma aclamação da “memória do sangue”, como Larry Neal chama isto, que os africanos na América reteve uma significante essência da estética africana, o desenvolveu, embelezou e recontextualizou. Na área cultural onde a retenção tem sido fraca, os Africanos Americanos tiveram que recriar a forma. Um caso em questão tem sido nomear tradições: “Tamika”, “Shaqueeta”, “Nikia”, “Shaquan”, transmite a impressão e som da estética Africana sem sua forma original ou significado.

Nós temos nos recuperado, nos tornamos recolocados na fonte Africana e nos familiarizamos novamente com o teatro, música, dances e artes da África como eles vieram direto do continente. Essa recuperação é realizada ao lado da nova cultura africana que surgiu na América. O fenômeno que continua a ocorrer é a síntese, a fusão e a reconstrução, que é uma parte vital da estética afro-americana.

Nós encontramos a corrente que segue o uso da estética na América Africana. É uma estética pan-africanista que é combinada, fundida e sintetizada em uma destacada colagem que não presta homenagem a nenhuma cultura específica, mas apresenta um dobale (gestos de respeito) para uma cultura Africana. O pano Kent na América não é mais de domínio exclusivo de Gana, mas é Africano; pano bokolafini não é mais de domínio do Mali, mas é Africano. Há uma contribuição única nesta forma indutiva de estética que é trançada dentro do padrão holístico de África.” [Welsh-Asante]


2.4 A estética é viva porque nós vivemos.

“A máscara africana não é, em essência, uma representação. Não é um aparato sem vida. Não é uma "obra de arte" para ser admirada em uma parede. Não é certamente um "disfarce". É uma força. Tem sido e, como tal, pode/deve ser poderosa. Seu poder reside na sua capacidade de transformar. Máscaras são usadas para transformar meninos em jovens. O Sowo é usado para transformar meninas em mulheres mende. Máscaras são usadas para assegurar a presença dos ancestrais em ocasiões cerimoniais e procedimentos judiciais. Usadas para curar, para amedrontar, para fertilizar, para iniciações, para firmar juramentos, para apaziguar e expiar. Costumam harmonizar, louvar e lamentar. Mais importante, elas são usadas para energizar a transformação de nossa consciência e nosso ser. Nós não somos mais nossos “eus” comuns, mas nos tornamos nosso “eu” cultural mais profundo.

As Máscaras africanas criam humores e tornam o invisível visível. Nesses seres criados, o ritmo do espaço e da forma afeta a consciência daquele que a experiência e altera sua realidade perceptiva. Os materiais são escolhidos cuidadosamente, pois cada um dos ingredientes (madeiras, fibras, metais, vidro) tem seu próprio potencial de energia/força. O poder de uma máscara não é um fator constante; com o tempo, uma peça pode perder seu poder, ser descartada ou reenergizada. As máscaras são frequentemente "alimentadas" com oferendas rituais, uma vez que são seres vivos. As máscaras africanas são dramáticas, capazes de evocar emoções fortes. Elas são intensas e, portanto, podem aprofundar a consciência e a resposta psicológica daqueles que os experimentam. Nós falamos novamente do poder; a força que transforma.

A máscara é criada pelo "artista" e como tal deve receber vida, que é possuir "ser" e "força". O artista de Nyama deve ser forte, para não ser inadvertidamente afetado pela força da máscara que ele cria. O artista coloca parte de seu ser na máscara. Todos os "artistas" africanos (criadores) devem sacrificar-se deste modo para criar; pois aquilo que eles criam é animado, o "artista" está, portanto, dando à luz.

Todo africano é um "artista". Isso é verdade porque, como seres humanos, temos consciência, e essa consciência pode ser expressa como vontade e a intenção de construir a realidade; de mudar o que vemos, e animar os "inanimados" (Kintu, forças da vida congeladas). Ao mesmo tempo, nossa tarefa como pessoas africanas é facilitar o fluxo da Força Vital Universal (Ntu, Ka), para energizar a nós mesmos e aos outros africanos, e para receber as forças vitais dos outros (conceito Dogon). Nossa consciência pode ser capacitada para manifestar força em várias modalidades. Podemos fazer isso com a nossa vontade. Podemos pensar, conceituar e planejar comunitariamente: isto é, como parte de nossa consciência nacional.” [Marimba Richard]



Referências:

AFROCENTRICIDADE: uma abordagem epistemológica inovadora/Elisa Larkin Nascimento (org.). São Paulo: Selo Negro, 2009.

História da Arte: ensaios contemporâneos. Organização: Marcelo Campos, Maria Berbara, Roberto Conduru, Vera Beatriz Siqueira. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011.

QUINTÁS, Alfonso López. Estética. Tradução Jaime A. Clasen. – Petrópolis, RJ: Vozes, 1992.

The African Aesthetic: keeper of the traditions/ Edited by Kariamu Welsh-Asante. London: Praeger, 1993-1994.


 
 
 

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Imagem do cabeçalho: Mulher com duas crianças carregando uma cabaça na cabeça (Arugbá). Madeira, uáji, pigmentos outros. Século XIX.

 

Arte Iorubá atribuída a Kobi Ogun Kakeye d'Òràngun-Ìlá.

 

Museu de Arte, Foudation for the Arts Collection, Gift of Mr. and Mrs. Atanley. Dallas, EUA. Fonte: Babatunde Lawal. 

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